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VIAGENS DE ANTONIO MIRANDA PELO BRASIL
Foto wikipedia.org
NATAL - RIO GRANDE DO NORTE
13-03-1986
Aventurei-me em um ônibus até Natal [desde Recife ] por convocação de meu amigo José Valério Cavalcante de Albuquerque. O ônibus tinha ar condicionado e lá fora, no calor dos trópicos, era só canavial.
O Nordeste virou um grande canavial, enquanto o sul é só soja. Nada mais que cana de açúcar.
A usina de cana tritura também os ossos do cortador de cana.
Quilômetros e quilômetros de canaviais. Belos e monótonos.
Passamos pela moderna rodoviária de João Pessoa. Lá tomei outro ônibus, depois do almoço. Em seguida saímos por uma estrada de terra, por um desvio, pois a ponte da BR-101 estava em reparos. O caminho era precário, arenoso, estreito. O ônibus tanto podia afundar na areia como, se chovesse, atolar na lama.
No percurso lento e interminável era só canavial.
Passamos por Espírito Santo, uma cidade em ruínas, depois das inundações terríveis do ano passado. Custa a crer que aquela planície enorme pudesse represar tanta água! Mas as dezenas de mini-açudes improvisados feitos sem qualquer critério, por levas de operários das “frentes de trabalho” do governo nos anos da seca, armazenaram muita água e romperam em uma sucessão avassaladora.
Casinhas diminutas e baixinhas, levantadas com taipa se cobertas de telhas encardidas, ruíram como cartas de baralho. Só mesmo uma velha igreja e um casario colonial num dos pontos mais altos do terreno estiveram longe da fúria das águas e mantêm, intactas, sua imagem branca e primitiva, rural e antiga.
Natal, capital do Rio Grande do Norte, ergue-se do solo sem sucessivas edificações! Uma avenida costeira no pé das dunas andarilhas revela a sinuosidade de suas múltiplas praias, com seus novos habitantes e seus novíssimos hotéis.
José Valério levou-me a todos os cantos, do Alecrim a Ponta Negra, do centro à periferia, para mostrar-me os progressos da cidade, inclusive as obras intermináveis da moderna catedral, de arquitetura indefinida. Com a família dele convivi horas de hospitalidade tipicamente nordestina, confortável e plena de atenções. E a nossa conversa centrou-se em nosso interesse comum: a cartofilia. A imensa coleção dele já ultrapassou os 65.000 cartões-postais, sem contar os cartões não classificados e as milhares de duplicatas.
E falamos de Zila Mamede, que morreu no mar.
Zila era a poeta (ela preferia ser chamada assim) da cidade. Bibliotecária, bibliógrafa, intelectual franzina mas de animada expressão, plena de vitalidade e entusiasmo.
Éramos bons amigos e trocávamos livros de poesia. Carlos Drummond de Andrade admirava sua criação. Elaborara, em anos de paciência e renúncia, uma monumental bibliografia de Câmara Cascudo e estava concluindo a de seu amigo João Cabral de Melo Neto.
Ela entrou no mar para seus contágios aquáticos , para seu diálogo de praieira obstina e só foi encontrada horas depois, com o corpo intacto. Quem reconheceu o cadáver tranquilo de Zila foi José Valério, que é médico.
Era Zila quem me recepcionava em Natal, em tempos passados. Há dois anos atrás, no pequeno aeroporto de Lisboa, eu ouvia uma voz alegre e era Zila que voltava de sua primeira turnê como aposentada. Foi uma surpresa feliz e voltamos no mesmo avião, atualizando nossas informações pessoais. Voltei a vê-la, por algumas horas, em uma reunião no MEC, quando ela me contou, com muito vigor e empenho, sua nova experiência na Biblioteca Pública de sua cidade.
Não voltei a vê-la depois disso. Mas guardo na minha parede uma linda gravura de Marília Rodrigues, com um belo poema que ela criativamente escreveu.
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